Em 1979, nos termos do contrato de cessão do terreno para a construção do Hotel Jatiúca, a prefeitura de Maceió estabeleceu expressamente que o ecossistema que cerca a Lagoa da Anta jamais poderia ser descaracterizado. Apesar dessa vedação legal, o Grupo Lundgren, proprietário do hotel, e a construtora Record retomaram as tratativas para a conclusão do contrato multimilionário que prevê a construção de cinco espigões no local onde, há mais de 40 anos, funciona o resort pé na areia, em harmonia com o ecossistema único da Lagoa da Anta. O projeto, que inclui torres de 15 andares, é assinado pelo estúdio italiano Pininfarina.

Ouvido pela Gazeta, Hélio Abreu, sócio da construtora, confirmou, na última quinta-feira (30), que a negociação foi retomada e está em pleno andamento, mas disse não poder comentar detalhes, pois tudo segue “sob sigilo”.

Conforme foi antecipado pela reportagem em agosto de 2024, o “contrato de gaveta” entre as partes fixou o início das obras para o período pós-eleitoral. A proposta prevê a construção de cinco ‘espigões’, incluindo um hotel, um edifício comercial e um residencial, enquanto os outros dois ainda estão em fase de definição quanto ao uso. Todos terão 15 andares.

Especialistas, juristas e advogados que atuam em tribunais superiores ouvidos pela Gazeta corroboram que, via de regra, esse tipo de cessão não permite a venda do imóvel. Caso o beneficiário da cessão não queira mais utilizar o bem público, deve devolvê-lo para reincorporação ao patrimônio municipal.

“Diante de como está sendo conduzido esse negócio, tudo indica que haverá uma longa disputa nos tribunais, diante da latente insegurança jurídica que se observa nesse contexto”, avaliam advogados consultados.

Outro ponto questionável diz respeito à completa ausência de discussões públicas sobre a venda do espaço, localizado no coração da Jatiúca — chamado por alguns de “Ibirapuera de Maceió”. Para o advogado e ambientalista Alder Flores, intervenções urbanas precisam atender a requisitos legais, urbanísticos e ambientais. Ele destaca que, nesse caso, seria necessário um estudo de impacto ambiental, com realização de audiências públicas, permitindo que órgãos de controle e a sociedade conheçam e opinem sobre o projeto.

“O empreendimento precisa apresentar aos órgãos públicos o projeto básico, a viabilidade ambiental e passar pelo licenciamento prévio. A licença prévia é que determinará quais são os estudos ambientais necessários para a implantação dessa atividade”, explicou.

Sobre os impactos ambiental, urbanístico e social, o promotor Jorge Dória, titular da Promotoria de Justiça de Urbanismo do MPAL, já havia alertado que todo o ecossistema que envolve a Lagoa da Anta é protegido por lei.

“A preocupação, quando vi na imprensa, é sobre a possibilidade de desconfiguração daquela paisagem. O aspecto paisagístico é protegido por lei, e ali temos um cartão-postal de Maceió. Um local que se tornou icônico, não apenas pelo hotel, mas pela composição de diversos fatores, como praia, lagoa e natureza”, afirmou.

Ambientalistas reforçam a preocupação com a falta de debate sobre o impacto socioambiental irreversível que o empreendimento pode causar. Eles alertam que, caso não haja rápida intervenção dos órgãos de controle (municipais, estaduais e federais), o cenário bucólico, que combina lagoa, mar, sombra, coqueirais e áreas verdes em plena capital, pode estar com os dias contados.

INCERTEZA

À sombra dos coqueirais e no gramado da Lagoa da Anta está o coração da Jatiúca. Foi a partir do hotel que o bairro prosperou e se tornou o que é hoje.

Há 44 anos, esse espaço verde, de fazer inveja a qualquer cidade, se destaca em meio aos prédios, compondo a paisagem paradisíaca de Maceió e servindo como cenário da vida dos maceioenses. Diante da incerteza sobre o futuro da área, moradores, turistas, ambientalistas e urbanistas temem que tudo isso se torne apenas lembrança.

A área de 62 mil m² conta com construções baixas, coqueiros e um manancial preservado, garantindo a vista atual, em equilíbrio com o meio ambiente.

A aposentada Gorete Pereira, moradora da região e usuária habitual do espaço para caminhadas, demonstra preocupação com o impacto que o empreendimento terá sobre as práticas esportivas e o lazer.

“Com certeza, essa construção vai prejudicar nossa caminhada. Não só a mim, mas a todos que utilizam esse espaço”, destacou. O cirurgião-dentista Pedro Vieira dos Anjos também lamenta a possível perda da área.

“Esse espaço é importantíssimo: livre, verde, arejado, lindo, maravilhoso. Para o lazer, para espairecer, não tem lugar melhor. Tirar esse espaço de convivência será uma grande perda para todos que aproveitam esse ambiente diariamente”, disse, surpreso ao saber das construções.

Além das preocupações ambientais e urbanísticas, o projeto das megatorres na Lagoa da Anta gera questionamentos sobre infraestrutura e mobilidade. Não há previsão de um plano de saneamento adequado para atender ao aumento populacional, nem informações claras sobre a oferta de vagas de estacionamento para os futuros moradores. Atualmente, a região já enfrenta problemas de congestionamento e escassez de espaços para veículos, e a implementação do empreendimento tende a agravar ainda mais esse cenário.

PLANO DIRETOR

Desatualizado há 15 anos, o Plano Diretor de Maceió encontra-se na fase final de discussões públicas. Com uma legislação defasada, o Grupo Lundgren e a Record podem se beneficiar das lacunas existentes para viabilizar a construção das megatorres.

Procurado, o presidente da Casa de Mário Guimarães, vereador Chico Filho, não se manifestou sobre como enxerga o projeto que ameaça a Lagoa da Anta.

PROJETO DE BURLE MARX

A Lagoa da Anta, com sua paisagem integrada ao hotel, tornou-se um dos espaços mais importantes de convivência na orla da Jatiúca. Seja pela tranquilidade, seja pelo equilíbrio com a natureza, o local foi cuidadosamente projetado pela equipe do paisagista Roberto Burle Marx.

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