Sistema Prisional Feminino Santa Luzia, Maceió. A equipe da Tribuna se prepara para colher as primeiras informações com intuito de produzir uma série de reportagens que se inicia nesta edição de fim de semana sobre um projeto ressocializador no sistema prisional alagoano que tem apresentado bons resultados.
O nome do projeto é “Livros que Libertam”, parceria entre a Secretaria de Estado da Ressocialização e Inclusão Social (Seris) e o Tribunal de Justiça através da Vara de Execuções Penais, que tem intuito de reduzir a pena dos reeducandos por meio da leitura (Leia mais detalhes ao fim da reportagem).
A equipe entra. O clima é calmo, mas fica no ar algo como uma certa tensão, fruto dos olhares entre os jornalistas e a equipe das policiais penais e as agentes encarregadas de fazerem a segurança do presídio feminino que acomoda 150 reeducandas. Os profissionais da segurança recolhem os pertences que não sejam o gravador do jornalista e a máquina do repórter fotográfico Adailson Calheiros. Mas tudo certo, o trabalho segue e a Tribuna vai até os personagens encarcerados ou privados de liberdade.
Gravador ligado, no ponto. E a Tribuna saca da cartola a primeira pergunta para a primeira personagem desta série de reportagens. Ela é Clea Fernanda Máximo da Silva, 42 anos. Cumpre pena há 5 anos e 10 meses no Presídio Feminino Santa Luzia. Cléa pegou pena máxima de 20 anos por ter assassinado o ex-companheiro. Com o bom comportamento e a participação no projeto ressocializador do “Livros que Libertam”, ganhou o direito de cumprir 2/5 da pena, o que significa que tem, teoricamente pela frente, ainda, oito anos no regime fechado.
Ela espera a remição de pena ao ser a primeira monitora do “Livros que Libertam”, que chegou em sua vida em 2022. “Passei por violência psicológica de todos os tipos e chegou um ponto que não deu mais. Ele era usuário de drogas. Foi uma relação abusiva que durou seis anos da minha vida”, relata ela, ao dar detalhes de como ceifou a vida do ex-companheiro com golpes de arma branca.
Hoje Cléa é casada com outra pessoa, uma companheira de presídio. Antes do acontecido, morou na Europa: um ano na Espanha, nas Ilhas Canárias, e, posteriormente, na Itália, na Sicília. Juntando os dois países, Cléa viveu 16 anos fora do país. Mas o crime foi cometido na sua volta ao Brasil.
Atualmente no Módulo 2 do presídio, e com uma cultura acima da média entre as colegas de ambiente, antes de ter cometido o crime que a levou ao encarceramento, ela chegou a cursar Economia até a metade, na Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e, depois, no Centro Universitário CESMAC, à época, e terminou na cidade de Torino, já na Itália. Cléa também chegou a passar em concurso do Banco do Brasil, mas já estava lá na Itália, e não voltou para o Brasil para assumir o cargo. Cléa também exerceu carreira artística antes de ser condenada. Foi cantora de forró em uma banda. “Minha mãe dizia que a gente só teria alguma coisa se estudasse e assim fiz, sempre gostei muito de ler”, completa a reeducanda.
Cléa tem em mãos para ilustrar as fotos, a obra-prima nacional “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. E acrescenta que, além do escritor alagoano ilustre, tem ainda como seus autores preferidos no mundo da literatura os escritores famosos pelo gênero de suspense e terror, Stephen King, e Dan Brown, autor do best-seller “O Código da Vinci”.
“NINGUÉM ESTÁ LIVRE DE COMETER UM ERRO”
Sobre o preconceito que ainda reina em boa parte da sociedade em relação à política de ressocialização nos presídios brasileiros, Cléa manda um recado:
“Eu debato muito isso com minhas colegas aqui dentro. Ninguém está de livre de cometer um erro grave ou uma fatalidade em algum momento da vida. Tem muita gente apontando dedos acusadores lá fora para os que estão aqui dentro, mas não sabem que amanhã podem ter dedos apontados para si próprias e podem cometer uma fatalidade ou ter alguém da família que cometa um erro grave. Por isso acredito que todo mundo mereça uma segunda chance”, defende Cléa.
“Muitas vezes é um momento em que a pessoa age puramente pela emoção e aí comete o erro”, justifica. “Somos seres humanos, não somos bichos, não somos monstros. Passamos por dificuldades na vida e merecemos, sim, termos novas oportunidades. Se eu pudesse voltar atrás, faria diferente. Mas fica o aprendizado”, completa a reeducanda.
REEDUCANDA PRODUZ PARÓDIA DE OBRA-PRIMA
Embora encarcerada no presídio feminino Santa Luzia, sua imaginação e a intimidade com as letras a fizeram se inspirar e, literalmente, “voar” e dar asas à imaginação com as letras que libertam. Elas fizeram Cléa fazer uma releitura e ir além em uma das obras-primas da literatura brasileira. A reeducanda produziu uma paródia de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, citando a personagem Baleia, que, na narrativa, transcende sua condição de animal e é, de certo modo, uma extensão da família de Fabiano, o outro personagem principal da obra.
A reeducanda reconta em forma de paródia a saga da família de retirantes que, pressionada pela seca, atravessa o sertão em busca de meios para sobreviver. Para a sua adaptação do best-seller de Graciliano Ramos, cuja obra entrou em domínio público em janeiro de 2024, a reeducanda faz uma releitura em forma de música dos personagens do romance mais emblemático do autor alagoano. “Esse livro me foi apresentado ainda na escola. Mas, recentemente, por conta do projeto, me pediram para tirar uma música de forró desta obra. Fiz apresentação para os juízes e deu certo, todo mundo gostou”, conta a ex-cantora do gênero referindo-se aos magistrados da Vara de Execuções do Tribunal de Justiça alagoano, parceiros do projeto. “Quem sabe se não aparece alguém para interpretar e realmente virar uma música de forró gravada”, completa Cléa, ao dar um sorriso meio descrente de que isso aconteça.
Criado por meio da parceria entre a Seris e o Poder Judiciário de Alagoas, o projeto prevê a redução da pena por meio da leitura. A iniciativa segue o que preconiza a Resolução nº 391 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que garante a remição de pena por meio de práticas sociais e educativas em unidades de privação de liberdade. A meta é que até 2024 todas as unidades prisionais de Alagoas sejam incluídas no projeto.
Cada obra lida possibilita ao custodiado a redução de quatro dias de pena. Em um ano, ele pode ler e avaliar até 12 obras, tendo a possibilidade de reduzir sua pena em 48 dias. A ideia é que seja montada uma biblioteca em cada unidade prisional do estado.
Atualmente, cerca de 3 mil reeducandos participam da iniciativa, incentivada pelo CNJ.