Coragem. No dicionário, é a força para enfrentar desafios e persistir diante das adversidades. No futebol, um ambiente historicamente dominado por homens, é também a marca de quem ousa conquistar e manter seu espaço. E poucas trajetórias exemplificam isso tão bem quanto à de Mírian Monte.
Há 11 meses, a até então vice-presidente do CSA viu Rafael Tenório renunciar ao cargo de mandatário do Marujo, vestiu literalmente a camisa da União e Força — lema do clube — e decidiu assumir o leme do barco como presidente.
O cenário da época era o pior possível: o Azulão havia acabado de ser eliminado na fase inicial do Campeonato Alagoano, sequer conseguiu avançar no primeiro desafio da pré-Copa do Nordeste e, em março, o calendário do time na temporada só contava com mais duas competições: a Copa Alagoas e a Série C.
Com suor e muito trabalho, Mírian e os demais membros do CSA conseguiram a permanência no Brasileiro. A barca grande no meio da competição, que incluiu a dispensa de titulares e do coordenador de Futebol, Marquinhos Mossoró, foi uma das medidas que contribuíram para que o clube desse a volta por cima.
Ano novo, planejamento novo
Hoje, prestes a completar um ano no cargo, a realidade é bem diferente. Mírian Monte abriu o gabinete no CT Gustavo Paiva e recebeu a reportagem do TNH1 para uma entrevista exclusiva.
A dirigente passou a limpo o ambiente encontrado quando assumiu o CSA, as dificuldades financeiras, as conversas para transformar o clube numa Sociedade Anônima do Futebol (SAF) e o polêmico portal da transparência do clube.
Gestão interina e clima de guerra
Mírian Monte já havia assumido o CSA de forma interina em dezembro de 2022, quando era vice-presidente do Conselho Deliberativo e precisou, na ausência de Rafael Tenório – afastado -, assumir o clube.
Naquele momento, o Azulão tinha acabado de ser rebaixado para a Série C. Segundo Mírian, o clima era hostil, com conflitos intermináveis e com apenas R$ 160 mil nos cofres.
Para mim, emocionalmente, foi muito mais difícil quando resolvi assumir o clube interinamente em dezembro de 2022. Quando houve a renúncia coletiva de toda a diretoria executiva e quando nós tínhamos sido rebaixados para a Série C. O ambiente realmente era hostil, era de guerra, conflitos intermináveis. Pessoas que eram amigas se tornaram inimigas. Um ambiente político absolutamente incontornável — continuou:
— E eu pego o clube num quadro de total derrota, em todos os aspectos, financeiro e administrativo. Recebo o relatório da contabilidade e o clube, naquele momento, tinha 10 milhões em dívidas vencidas, prontas para serem executadas a qualquer momento. O clube não pagava ninguém desde outubro, o caixa estava esvaziado. Tinha R$ 160 mil.
Rafael voltou à presidência, mas, após a eliminação precoce no estadual de 2024, decidiu renunciar. Foi ali que Mírian precisou, mais uma vez, de coragem para assumir a cadeira de forma definitiva.
Em março de 2024, depois de uma não classificação para a semifinal do Alagoano, Rafael decide realmente renunciar. Faltam dez dias para o início da série C. Eu, de fato, naquele momento, tive uma dúvida imensa. Era eu e Deus. Um clube com todos esses problemas e essa complexidade. E aí, o que acontece: eu começo a receber um clamor de algumas pessoas para que não saísse.
No primeiro momento, a situação financeira assustou.
[Hoje] não há ninguém que faça aportes financeiros no clube, o que a gente fez foi gestão. Um clube na série C não é autossustentável apenas com as cotas de participação dos campeonatos e da parte esportiva, não é. Se a gente tivesse em uma série B, o CSA teria cerca de R$ 10 milhões anuais, só pelo fato de estar na série B, fora os patrocínios que são maiores, fora as rendas que são importantes e entram. Numa Série C é mais difícil, porém nós somos a prova viva da grandiosidade do CSA, porque hoje o clube é administrado por uma mulher, funcionária pública, e por um grupo de profissionais, de funcionários públicos, de pessoas comuns, mas totalmente abnegadas.
Confira principais trechos da entrevista completa
Problema de planejamento em 2024
— A gente entende que houve problema de planejamento. Houve, inclusive, pedido, de forma gentil, mas pediram para que não houvesse interferência de ninguém na montagem do elenco que iniciou 2024. Mas aí, monta-se um time e, no primeiro momento, tem o treinador Rogério Correia. E aí, claro, ele vai tentar trazer peças, vai solicitar atletas que vão ter perfil para desenvolver uma filosofia de jogo. Aí você monta, traz todo mundo, monta o time. No primeiro jogo [do estadual] você demite. Aí você fica com grupo montado para planejamento de técnico que não está mais. E detalhe: ele foi campeão [da Série C pelo Volta Redonda no final de 2024], né? Então, ele não estava de tudo errado, é a questão da convicção.
Início difícil na Série C e reformulação drástica
— O time estava desmotivado, meio perdido, com dificuldade de saber com quem estava o comando, de entender o direcionamento. E aí, a gente vai e tenta, durante nove partidas, consertar o processo, mas a gente não consegue. Durante as nove primeiras partidas, as nove primeiras rodadas da série C, nós estamos na vice-lanterna, com 92% de chance de rebaixamento. Naquele momento, nós temos que tomar uma decisão drástica. O futebol avaliou e disse: “olha, vamos ter que mudar essa espinha dorsal toda”. Desligamos titulares e foi aí que a gente deu uma arrancada extraordinária. E nas últimas dez partidas, nós lideramos a série C.
Orçamento e gestão “mão de vaca”
— A gente vai mostrar que nós conseguimos fazer uma gestão enxuta. Nós enxugamos 50% da despesa, ponto. O clube tinha uma despesa mensal de R$ 2 milhões. Hoje, é de R$ 1 milhão e, se depender de mim, a gente derruba isso. Estamos mudando a cultura do clube. O clube esteve na Série A. Então, o pessoal relaxou: “Vamos gastar, não precisa economizar, não precisa fazer cotação, não precisa buscar orçamento”. E hoje mudou. A gente vai na pechincha, não tenho vergonha nenhuma de dizer que a gente é mão de vaca.
Dificuldades financeiras
— O clube na Série C precisa do poder público. Ele precisa dos patrocínios públicos, do estado e da prefeitura. E, evidentemente, dos parlamentares, que entendem que o futebol gera empregos, movimenta a economia e traz visibilidade para o estado e para o município.
Primeiro contato para ser SAF
— A nossa diretoria de negócios foi consultada por representantes da XP na Confut. Então, nós abrimos a conversa, tivemos um primeiro momento com a diretoria executiva. Depois, eu pedi que a gente suspendesse a reunião e já pedi para termos a presença de representantes do Conselho Deliberativo e do Conselho Fiscal também. Vamos tentar trabalhar todos de forma conjunta, porque em algum momento nós vamos precisar acioná-los. E assim foi feito.
Reunião com a XP em Maceió
— Nós fizemos uma segunda reunião virtual. Depois, nós recebemos um convite para ir para São Paulo, na XP. Eu disse que não ia deixar de ir, mas falei: “nesse primeiro momento, talvez seria melhor um movimento inverso. Venham vocês conhecer aqui. Nós temos uma diretoria grande, nós temos uma estrutura muito boa, que vocês podem visitar e conhecer, quem sabe até ampliar o planejamento, a ideia que vocês estão tendo em relação ao social. Então, venham”. Então, eles vieram nessa sequência, de dar continuidade a essa conversa, de apresentação, para que a gente se familiarize com a questão da SAF, que é algo realmente que precisa ser pensado com muita responsabilidade.
Opinião em relação à SAF
— A minha opinião pessoal em relação à SAF é de que esse é um movimento que não vai dar para fugir dele. O modelo associativo funcionou bem até um determinado momento, mas o futebol evoluiu. Hoje é muito difícil que você consiga, de fato, receber investimentos consideráveis, que possam fazer com que o time seja competitivo, engessado em um modelo em que o próprio nome já diz: é uma associação sem fins lucrativos.
Gestão no CSA e 2025 no azul
— Hoje, a gente conseguiu mostrar que o CSA, mesmo com o modelo associativo e mesmo sendo comandado por pessoas comuns, irá fechar o ano no azul, com as contas equalizadas, em dia. Nós estamos conseguindo manter o clube e, para mim, é o maior cartaz de que o CSA é forte, que vale a pena apostar e investir no clube.
O que a XP fará caso conversas avancem?
— Provavelmente, a proposta que virá é de que a XP estará representando o clube no mercado para captar investidores. O que a gente precisa observar é, realmente, a experiência, a inserção no mercado e os clubes que já se tornaram SAF através da XP. Nós passaríamos uma procuração para que eles buscassem esse investidor.
Sócios votarão mudança estatutária
— Para se tornar uma SAF, o CSA precisa de mudança estatutária. É por isso que eu falo ao torcedor: façam o sócio. O sócio garante mais do que o acesso ao campo. Garante também uma renda importante e será o sócio que vai decidir na Assembleia Geral se o CSA permanece como associação sem fins lucrativos ou se irá se transformar em SAF.
E se a mudança não for aprovada?
— A torcida vai ter que ter um grupo para suceder que seja tão abnegado quanto esse que está hoje, porque, se não, não vai andar. Tem que ter pessoas que realmente assumam o compromisso, que estejam no dia a dia, saibam gerir emoções, crises, finanças. É preciso ter uma estabilidade político-administrativa para que o clube não volte a sofrer as consequências de guerras, conflitos internos, confusões, pessoas despreparadas.
Públicos baixos no Rei Pelé
— Há muito tempo o CSA não tem uma carga tão intensa de jogos. Tanto é que a gente está sentindo dentro do elenco. E isso interfere, também, na economia do torcedor. A gente sabe que o torcedor, principalmente em janeiro, depois das festas de fim de ano, tem matrícula escolar, despesas, e isso aperta um pouco. Eu acredito que [os públicos baixos] tenham uma explicação mais na economia em si, do que apoio efeito da torcida. Mas acredito que iremos estabilizar isso na Série C.
Cobrança da torcida organizada
— Achei excelente, recebi com felicidade. As pessoas podem pensar: “como essa mulher está feliz?”. Mas estou porque eles estão legitimando um desejo que eu possuo e a diretoria também, que é de transparência.
Portal da transparência
— Ninguém mais do que eu está desejando esse portal da transparência. A gente vai lançar, a contabilidade está fechando as contas. Vamos apresentar os balanços. Se eu pudesse, a gente já estaria publicando os extratos, mas a gente precisa preservar o sigilo da instituição, tem que saber como trabalhar esses dados. Estamos organizando uma coletiva para apresentar as contas ao vivo.
— Recebi muitos pedidos para que não fizesse esse portal, porque iria ferir a suscetibilidade. Mas tem que ter transparência, é urgente. Vamos ter erros, acertos, mas tem que estar lá para todo mundo ver, avaliar e tirar suas próprias conclusões.
— Terá tudo o que for relacionado a nossa gestão. Evidentemente, teremos um breve comparativo dos anos anteriores, creio que 2022-2024. E, neste ano, teremos o compromisso de estar alimentando as informações em tempo real.
Futuro no futebol e desejo de encorajar mulheres
— Muito difícil de responder para uma pessoa que é de carreira jurídica. Já fui delegada, secretária de cultura, sou do Judiciário Federal, estou no futebol e faço parte das academias literárias. Então, sou uma pessoa extremamente dinâmica. Eu gosto de aprender e isso está sendo um aprendizado gigante para mim. Viver é ter experiência.
— Eu tenho o desejo de abrir portas para outras mulheres. No mínimo, encorajar. Se eu encorajar uma, já irá valer o esforço.
— Eu estou focada no presente e estou numa missão. Sempre que abraço uma missão, eu tento cumpri-la e vou até o fim. Vou cumprir a missão de deixar o clube organizado e pronto. Enquanto isso, o ganho que tenho é cognitivo, é conhecimento. Enquanto tiver essa fome, estarei no futebol.